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As 4 Formas Que A Pseudociência Usa Para Enganar Jornalistas e Leitores [2022]

Atualizado: 5 de set. de 2022

O Jornalismo tem papel fundamental na informação e educação da população sobre saúde, mas sua participação vai além. Ao atualizar sobre as últimas novidades da ciência, o Jornalismo de Saúde acaba por influenciar direta ou indiretamente hábitos de vida, de consumo, de uso de medicamentos, de realização de exames e de busca por atendimento médico.


Lembre-se das primeiras notícias sobre cloroquina e o consequente frenesi que fez os estoques acabarem da noite para o dia nas farmácias. Esse é o poder do Jornalismo de Saúde.


Mas não se antecipe em conclusões, o calcanhar de Aquiles do Jornalismo de Saúde não é notícia e sim a própria produção científica, pseudocientífica para ser mais preciso.


Estudos científicos com resultados interessantes e atrativos viram manchete de jornal, trending topics no twitter e post no instagram. É na busca por esse holofote da mídia que alguns estudos falsamente científicos tentam se disfarçar de "boa evidência" e passar despercebidos pelo crivo jornalístico. A pseudociência é perigosa e ardilosa.


A pseudociência mina a credibilidade de jornalistas e desinforma o leitor de 4 formas principais, os 4 calcanhares de Aquiles do Jornalismo de Saúde:


  1. Estudos Científicos Malfeitos

  2. Estudos Científicos Absurdos ou Inúteis

  3. A Técnica do Ilusionismo ou a Mágica da Interpretação de Resultados

  4. A Picaretagem


- CONTEXTUALIZANDO -


cartaz de filmes com comidas e saúde

Quantas vezes você já não leu uma matéria DEMONIZANDO o consumo de ovo, de café, de chocolate, de vinho, ...?


Quantas vezes você já não leu uma matéria ESTIMULANDO o consumo de ovo, de café, de chocolate, de vinho, ...?


Esses são todos temas atraentes, que mobilizam as pessoas a clicarem, seguirem, curtirem, se inscreverem e até comprarem jornais e revistas.


Mas você já se perguntou por que esses assuntos se alternam tanto entre heróis e vilões num plot twist eterno?


É culpa do tal calcanhar de Aquiles, culpa da produção pseudocientífica.


Confiamos cegamente que os resultados de um trabalho científico são íntegros, sérios, comprometidos em gerar a mais pura evidência. Muitos são. Muitos não o são. E é esse grupo de estudos ruins usando a máscara da “integridade científica” que acabam por enganar jornalistas – que podem publicar resultados maquiados – e leitores – que pensam estar consumindo verdades verdadeiras e não meias-verdades.


Veja as 4 formas que a pseudociência usa para enganar jornalistas e leitores:



1 - Estudos Científicos Malfeitos


Assim como um prédio malprojetado pode estar de pé hoje e cair anos depois ou um prato de comida sair bonito na foto, mas estar com gosto horrível, um estudo científico também pode ser extremamente defeituoso e ainda assim apresentar um resultado de aparência agradável.


Mas não caia nessa. Estudo malfeito é igual a resultado mal-obtido e, por consequência, invalidado.


Identificar um trabalho científico de má qualidade é tarefa difícil para aqueles sem olhos treinados. Eu posso ler um ato processual, uma planta baixa de um prédio e um balancete de uma empresa, mas nunca serei capaz de interpretá-los como um advogado, um engenheiro ou um administrador, respectivamente. Um artigo científico é como os exemplos acima: não basta ler, tem que saber ler.


fluxograma sobre leitura de estudo científico

Mas não se assuste, há dois sinais que indicam um estudo malfeito e que são fáceis de aprender:

  • Quando há um pequeno número de pessoas participando (aumenta em muito as chances do acaso)

  • Quando são publicados em revistas médicas ultradesconhecidas (se o resultado fosse tão bom assim, seria esperado uma grande revista médica ter interesse na sua publicação).


Mas por que aumentam as chances do acaso quando há poucas pessoas no estudo?


Pense em um jogo de cara ou coroa:

  • Vamos concordar que não seria extremamente espantoso se eu lançasse 1 moeda 4 vezes no ar e obtivesse 4 “caras” e nenhuma “coroa”.

  • Algum desavisado, no entanto, poderia concluir erradamente que a probabilidade de se obter “cara” é infinitamente maior do que “coroa”.

  • Sabemos que não é, o problema foi ter usado um baixo número de tentativas.

  • Se eu fizesse 1000 lançamentos com a mesma moeda, o resultado certamente ficaria muito próximo aos 50%.

Agora troque moedas por pessoas no exemplo acima e você vai entender como um estudo com poucas pessoas pode ser enganador:

  • Se estivéssemos fazendo uma pesquisa de intenção de votos no Rio de Janeiro e perguntássemos para apenas 4 pessoas de um único bairro (Leblon, por exemplo) em quem votariam para prefeito, não seria improvável que o candidato ganhador ao fim das eleições (candidato Y, por exemplo) nem mencionado fosse por esses 4 moradores do Leblon. Nesse caso faltou representatividade; isso é um exemplo de estudo malfeito.

  • Veja a figura abaixo: o Candidato X teve 100% das intenções no Leblon, mas quando se fez uma pesquisa com mais pessoas e englobando uma área geográfica maior (toda a Zona Sul carioca), o candidato Y teve 75% das intenções e até acabou ganhando essa eleição fictícia.

pesquisa fictícia de intenção de votos


2 - Estudos Científicos Absurdos ou Inúteis


Trabalhos científicos que pesquisam coisas absurdas podem acabar encontrando resultados positivos por mero acaso.


Imagine perder tempo pesquisando a relação entre beber água e câncer de mama. Todos bebemos água (seja mineral, do filtro, com gás, em suco, em refrigerante...). Uns mais, outros menos. O que seria muita ou pouca água? A quantidade ideal varia de acordo com o peso e a altura? E se a pessoa corre todo dia e sua mais, ela pode beber mais?


Por ter tantos poréns, seria um estudo absurdo e qualquer resultado igualmente sem sentido e utilidade.


Mas o pior é que publicaram essa pesquisa e o resultado foi que... não vou perder tempo mostrando o que ela achou. Estudo científico absurdo e sem sentido não merece virar notícia.



darwin desaprovando engolidor de espadas


3 - A Técnica do Ilusionismo ou a Mágica da Interpretação de Resultados


Uma foto feia com uma boa dose de filtros e photoshop pode atingir um nível Sebastião Salgado. Ilusão.


Estudos com resultados ruins também podem sofrer uma transformação da água para o vinho e apresentar ótimos resultados.


O mágico trabalha com uma plateia ávida por ser sugestionada e que, por desconhecer o mundo dos truques, aceita de bom grado a quebra da lógica.


O cientista-ilusionista também se apresenta para um público igualmente alvoroçado (todos nós queremos novidade) e que desconhece as sutilezas da interpretação de resultados. Dessa forma, o pesquisador-mágico transforma uma meia-verdade em verdade verdadeira, e isso vira notícia.


Veja como ocorre um dos truques:


mágico mister m

Resultado Encontrado:

“(...) consumo de X pode estar associado a câncer.”


Como o resultado é noticiado pelo pesquisador:

“Pessoas que consomem X têm mais câncer.”


Como ele é interpretado pela maioria:

“Consumir X causa câncer.”



Essa é a mágica de transformar ASSOCIAÇÃO em CAUSALIDADE. Um clássico sofisma científico.


cartaz estimulando parar de usar isqueiro

Não entendeu ainda?


Troque o X por ISQUEIRO no exemplo acima.


Isqueiro não causa câncer, mas está relacionado a câncer porque a maioria das pessoas que fuma usa isqueiro para acender seus cigarros.


Esse é apenas um dentre vários truques científicos que pesquisadores usam. Em próximas postagens vou mostrar mais desse arsenal mágico.



4 - Picaretagem


Sim, existem pessoas muito mal-intencionadas também no mundo da ciência. Plagiar estudos, manipular resultados, forjar dados... até as mais respeitadas revistas médicas já publicaram estudos que, apenas mais tarde, se descobriu serem falsos.


ranking de principais pesquisadores com estudos retratados

Em uma lista informal, o pesquisador Yoshitaka Fujii encabeça o ranking, com o maior número de estudos retirados de publicação após constatação de fraude: 183 estudos fraudados.




CONCLUSÃO


O jornalismo sério é capaz de filtrar e bloquear muitos estudos pseudocientíficos que tentam virar notícia, mas ainda assim um punhado irá passar despercebido, enganando tanto os que noticiam quanto aqueles que consomem a informação.


PS: CONCLUINDO DE VERDADE


O objetivo dessa e de futuras postagens sobre o tema é transformar você em um consumidor e divulgador de informação mais crítico e atento; treinar sua capacidade para perceber notícias com meias-verdades, mesmo que venham com o respaldo de uma grife como “professor de Harvard”, “especialista”, “cientista”, “da Universidade X”, “presidente da Sociedade Y”, ou qualquer outro pseudotítulo; e até fazer você entender por que café, vinho, chocolate, ovos e tantos outros alimentos se alternam entre mocinhos e vilões.


... Mas por que afinal esse plot twist alimentar eterno?


Vamos deixar essa curiosidade para uma próxima postagem, mas é culpa dos truques de mágica científica sob um caldo de estudo malfeito e uma pitada de inutilidade.


as 4 formas que a ciência usa para enganar jornalistas e leitores


E você, percebeu um dos 4 calcanhares de Aquiles em alguma notícia recente sobre saúde?


Bernardo Harboe é Clínico Geral e Cardiologista

Cofundador da CLÍNICA VH MED

Criador do @blogsaudecarioca

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